quinta-feira, 29 de maio de 2008

Invisível

"pessoas com suas malas
mochilas e valises
chegam e se vão
se encontram, se despedem
e se despem de seus pertences
como se pudessem chegar
a algum lugar
onde elas mesmas
não estivessem"

Alice Ruiz

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Esta é a tua safra

Minha filha, junto a teus irmãos não lamentem nem digam,
coitada da mamãe...
Ninguém é coitada, nem eu.
Somos todos lutadores.

Se souberes viver, aproveitar lições, escreverás poemas.
Teus cabelos brancos serão bandeiras de paz.
E viverás na lembrança das novas gerações.

Não te queixes jamais das mãos vazias que sacodem lama.
E pedaços rudes de um passado morto, não sejam revividos,
sem mais empenho senão enxovalhar, ferir e destruir.

Recria sempre com valor
o pouco ou o muito que te resta.
Prossegue. Em resposta ao néscio
brotará sempre uma flor escassa
das pedras e da lama que procuram te alcançar.
Esta é a tua luta.

Tua vida é apagada. Acende o fogo nas geleiras que te cercam.
O tardio poema dos teus cabelos brancos.
Recebe como oferta as pedras e a lama da maldade humana.
Esta é a tua safra.

Cora Coralina

Domingo

O relógio bate duas da tarde.
Jornais esparramados no chão,
o olhar passeia pela sala:
muitos objetos recolhidos por tantos caminhos.
Os filhos na rua, apreendem a vida.
Na saleta, a mulher lê uma revista.
Pela porta entreaberta
brilham as latas coloridas na prateleira da cozinha.
Na FM, Feuilles Mortes

A felicidade - será isso?

Sérgio Telles

I've Just Seen a Face

I've just seen a face,
I can't forget the time or place
Where we just met.
She's just the girl for me
And I want all the world to see
We've met.

Had it been another day
I might have looked the other way
And I'd have never been aware.
But as it is I'll dream of her
Tonight.

Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.

I have never known
The like of this, I've been alone
And I have missed things
And kept out of sight
But other girls were never quite
Like this.

Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.
Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.

I've just seen a face,
I can't forget the time or place
Where we just met.
She's just the girl for me
And I want all the world to see
We've met.

Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.
Oh, falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.

John Lennon e Paul McCartney

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Pedra com asas


ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque bão quer
não porque não tem asa

Paulo Leminski

Eye


Olho

Vi assim:
em um instante incerto,
ou melhor,
de uma certeza de quê não sei,
apareceu aquela porcelana
trincada de ponta à ponta,
olho oriental com cores de outras horas.
Talvez a lua,
mas a lembrança também se partiu.
Na Ásia me ouviram
e cantaram por mim
às deusas e deuses
de braços e vacas:
vi assim.

Daquela peça branca
pintada por mãos de flores antigas e leves
como o passado de toda a minha humanidade enfraquecida,
ouvia os passos de um relógio louco.
Pêndulo, meu coração,
teu olhar quebrado, inteiro.
Teu medo: disso me lembro.
Medo da criança, toda minha: palavra.
Da mulher, que eu não sabia,
fome do teu sangue ancestral.
Vi assim:
a corrida do plasma,
a carne cada vez mais vermelha.
As mãos umedecidas não vi,
mas era assim:
em cada vinco da pele uma gota crescia
e explodia após a partida.
Suor. Talvez não.
Memórias deixadas de lado em cada membro.

Vi assim:
do barro de que me fizeram
separou-se aquele olho oval
que sempre, me acusando,
absolvia os que morreram
no luto de minha felicidade.
Tracei caminhos na tua boca
mas teus beijos trituraram o vento.
Risco lento em tua carne amiga
e assustada.
Te torturaram mais do que podiam suportar os teus ossos fracos.
Morri contigo,
perdido nos fios daquela cabeleira: eclipse.
Vi assim.

Vi mais, confesso.
Menino, ainda, me lembro de seios de estátua.
Na verdade não era o busto, mas uma suspeita.
Pernas também tão longas
- o Chile de Neruda -
que não chego a me lembrar dos pés.
Vi, além disso tudo,
tanto cheiro:
de fruta - lembro a jabuticaba na varanda,
mulher, legume, criança, futuro...
Odor de coisa verde,
nada maduro, nada podre, nada mofado.
Vi assim: nada além.

Hora morta aquela.
Talvez não: hora da estrela...
Talvez a da manhã.
Talvez a outra que perdeu navios,
ou a que guiou os reis.
Talvez: suposição.

E suponho tanto corpo
em tanto pano que cobre
o ouro daqueles que esquecem.
Suponho um corpo de esquecimento.
Dádiva dos loucos,
fé dos que foram encarcerados
na liberdade de um mundo que enlouqueceu.
Um corpo sem cinzas,
sem verdades,
um corpo íntegro e sereno.
Me vigiam os anjos
que continuam sem entender
o mínimo que seja
a respeito dos homens.
Da minha lira solto a nota mais aguda
e caem serafins mortos na minha cama.
Quero um corpo vivo,
um corpo de gente:
- Chega de anjos!
Quero um corpo de mulher:
que compreenda,
que respire,
que se cubra e se dispa
de pelos e fragrâncias,
que traga o fogo do inferno
mas também
o medo do céu,
a faca na carne
e o sorriso de quem ficou em paz.

Mulher, qual teu nome?
Tento te chamar
mas as letras embaralhadas
c
a
e
m

n
u
m

poço
sem
fundo:

teus ouvidos.

Tanta coisa por dizer à mulher.
Tanta coisa que seca a língua
quando o momento se apresenta.
Tanta coisa de estragar os beijos de uma vida inteira
quando calam em peito indigno.
Caio: me traga os morangos mofados!
Vou levá-los todos à boca
e cuspi-los na cara dessa mulher,
para que ela entenda, meu amigo,
que meu desejo é honesto,
que meu fruto é escolhido,
que meu semblante carrega
toda a cor das terras que já pisei,
que meus olhos se cansam também,
que meu coração é diamante, amigo,
e manteiga quando vem o calor;
pra que ela entenda, Caio,
que a semente de mostarda é real,
e que sou árvore boa,
que tenho raízes estiradas em solo tão profundo
que nenhum vento me pode balançar;
para mostrar
que não deve cravar em minha casca,
com seu pequeno canivete,
um nome tão estranho e tão diferente do meu;
para que ela sinta o sabor da vida
e não dos versos que são sempre muito doces
e me viciam
e me perdem:
novamente.

No entanto, ela me olha.
Ou o chão, não me lembro.
Mas vi assim:
dois pires secos atirados ao ar.
Mil estouros
os cacos no meu corpo
o cansaço
a cura:

o começo

o casulo

o câncer.

Um inseto: mosca? Não, essas não ousam sua casa.
Talvez uma joaninha.
Deus fizesse ser uma barata
correndo por seu corpo inteiro,
ou um rato.
Talvez um vaga-lume.
Talvez uma ave:
um pombo-correio ou algo assim
que entrasse trazendo um botão de rosa.
Rosa criança como essa mulher.
Essa lagoa imensa,
essa água toda me chama
e eu me afogo
e me encontro.
Um boi me olhava, quieto, ruminando passados,
temendo futuros: contramão.
Uma boiada inteira
atravessando um caudaloso rio de incertezas,
muito calmamente,
muito calmamente.
Lembro dos bois mortos.

Outras vezes, vi assim:
astros orbitando em torno de um sol apagado.
Era o fim dos tempos.
Vi a besta com dez cabeças
sete chifres
tudo o mais.
Os selos começaram a se abrir.
Um por um.
As trombetas.
A grande explosão:
foi assim.
Antes do julgamento um novo começo.
Vi assim:
um sol novo, mais carbono que hélio,
mais luz e mais mistérios
nos raios que davam vida a tudo.
O calor, recordo, insuportável.
Todos os fantasmas
que nos louvavam,
eu e a criação,
derretendo naquele chão que era nenhum.
Pés, já disse, não lembro: pernas apenas,
que sustentavam todo o edifício.
Atlas, lembro, e rio muito:
o mundo nas costas.
Vi assim: há alguma coisa que esqueci.

Lembro que das extremidades escarpadas do apartamento
via todos os abismos e todas as estradas,
nada cabendo na certeza
das equações de minhas emoções despedaçadas.
Vi assim:
o dente sujo, pálpebra, asco, fúria,
sangue escorrendo até o pescoço: mordida.
Dor intensa, os cubos de gelo
no copo aéreo cheio de uísque.
Quando foi o corpo?
Não vi, mas era assim:
avenidas zunindo um atropelamento constante
carros cada vez mais rápidos
e o vagar do homem cada vez maior.
Lembro de pequenas faixas no céu,
mas isso já não era o corpo.
O machado na cabeça: aí sim, o corpo.
Duas cabeças agora, o machado sibilando no ar.
Dois olhos agora.

Vi assim:
dos movimentos etéreos
das curvas dos braços
dos toques em locais de peles cobertas
do sorriso crepuscular
um beijo hesitava
entre os dois olhos borrados.
Lembro dos lábios cerrados
das pernas
dos seios também. Menino...
Era assim:
um corpo estúpido
vendo um céu sem estrelas
mas com duas luas.
Diziam os loucos
que a lua vinha da Ásia:
lá me ouviram.

Era tanto movimento, que vi assim:
um verde morto
algo no cabelo
uma expectativa de um parto solitário.
Vi lágrimas depois. Foi assim:
a porta cerrada,
os risos,
os toques do telefone,
a amiga do outro lado
- ou o amigo, quem sabe -
mas depois um aperto tão forte
que tudo se fez água.
Pena do menino, da menina, de todos.
Temia pelo nosso futuro.
Um olho bobo agora, um olho estúpido.
Vi assim:
uma pedra escura e rara
roubada das minas de Salomão
que se partia em pedaços de papel.
Queimavam tudo em volta.
Traziam risadas e arrependimento.
A chuva cada vez mais forte,
e não choveu.
Os olhos estúpidos
apontando um norte irreal.
Era assim:
tanto braço,
tanta perna,
tanto corpo,
tanto rosto apagado.
Lembro de fotografias:
a paz nos rostos dos cadáveres da minha infância.
Como eu amava aquelas pessoas.
Como ardiam minhas vísceras
a cada pensamento daqueles:
cada imagem, uma chama.
Vi assim.

Vi também, no fim,
uma solidão tão grande,
um deserto tão perto de tudo,
lembro dos campos secando,
lembro dos vales vazios,
lembro de uma criança sozinha chorando com medo da vida...
Um corpo caído na cama,
sem anjos,
sem velas ao redor,
um corpo vivo e saudoso,
um corpo medroso,
um corpo de uma criança morta,
um corpo de mulher.
Lembro dos abraços,
de meus dentes naquela carne,
das gargalhadas no bairro inteiro.
Lembro também do caminhar com passos certos
por entre as casas antigas
as ruas de traçado planejado
e daquela flor que trazia as cores mais impossíveis do asfalto.
Não vi, mas era assim.

Raphael Negrão

Yellow Rose


Entrega

Chegaste com a chuva
Trazendo em tuas mãos a rosa amarela e delicada.
Cheiravas a terra úmida.
Terra úmida é o que eras.

Da moldura da janela,
Enquanto os braços do mar pousavam em teus ombros,
Espiavas o escuro da casa.

Do lado de fora,
Sem sentir o cheiro de mofo dos armários,
Sem ver os ladrilhos escuros do corredor infinito,
Sem pressentir o abismo por sobre o qual a varanda se estendia,
Me aguardavas com o cabo da flor
Arranhando a palma das mãos crispadas.

Abri-te a porta
E com o aroma da rosa tu entraste,
Tu também amarela e delicada,
Deixando para trás a terra úmida
Em troca da terra estranha e desabitada.

Raphael Negrão