sábado, 15 de setembro de 2012

O Espelho

Faz tempo que eu não olho mais a minha cara no espelho
Se olho me dá um desespero
Quem é esse sujeito do lado de lá?

Quando o corpo está cansado e a cabeça quer sossego
Eu deito na cama pedindo arrego
Mas faço de tudo para não sonhar.

Porque todo sonho é um grande espelho
Mas nele o que eu vejo, eu reconheço
Mesmo que esteja do avesso
Depois não esqueço
E quando a manhã chega
Eu anoiteço.

Penso e passo

Quando penso que uma palavra
Pode mudar tudo
Não fico mudo
Mudo

Quando penso que um passo
Descobre o mundo
Não paro o passo
Passo

E assim que passo e mudo
Um novo mundo nasce
Na palavra que penso

Para elas


Amor que se dedica
Amor que não se explica
Até quando se vai
Parece que ainda fica
Olhando você sair
Sabendo que vai cair
Deixar que saia
Deixar que caia

Por mais que vá sofrer
É o jeito de aprender
E o teu caminho
Só você vai percorrer
Se você vence, eu venço
Se você perde, eu perco
E nada posso fazer
Só deixar você viver

Enchemos a vida
De filhos
Que nos enchem a vida

Um me enche de lembranças
Que me enchem
De lágrimas

Outro me enche de alegrias
Que enchem minhas noites
De dias

Outro me enche de esperanças
E receios
Enquanto me incham
Os seios

Só olhar você sofrer
Só olhar você aprender
Só olhar você crescer
Só olhar você amar
Só olhar você.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Álvaro de Campos

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Para Caio, meu filho

Foi como abrir uma noz e encontrá-la apodrecida.
Não foi como pôr sal, mas sim como urinar na ferida.

Era como se na sala, há décadas, a luz houvesse queimado
e o pó só fizesse juntar tentando prender o presente ao passado.

De futuro, é certo, não havia nada, sequer um perfume.
Havia, ao contrário, a certeza de uma noite sem vaga-lumes.

E tudo isso, que antes não importava, agora era urgência.
E mesmo que não houvesse perfume, n'algum canto talvez permanecesse a essência.

E dela, de alguma forma, um sorriso de criança se construiria -
um sorriso com a firmeza da montanha e a certeza do meio-dia.

Um sorriso que só para cantar se desfizesse,
ou para chorar as raras lágrimas que a alma enobrecem.

Não era hora de manter o juízo
mas sim de assegurar o sorriso
da criança
que era de resto o seu próprio.

Era embriagar-se de vez
para finalmente ser sóbrio.

Era um sono calmo que viria,
e também alegria.

Duvidava, mas conseguiria.

Raphael Negrão

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Dobrada à morda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Álvaro de Campos

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Madrigal Melancólico [1920]

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

Manuel Bandeira

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Broken Hammer

Bêbado

Das pedras que tenho nas mãos
não consigo fazer pó nem castelo.
De que me serve
a evolução humana até aqui,
a civilização?

A "civilização",
e o riso irrompe,
inevitável.

As mãos repletas de calos
que não contam histórias
são uma vergonha inefável.

O desenho animado
me revela uma verdade
até aqui desconhecida,
ou, se conhecida,
indecifrável:

pedras não são pó nem castelos.
Pedras são pedras
e não temem martelos.

Raphael Negrão

Bêbado II

Se canto
e me alegro
é só porque
quotidianamente
as palavras
sonego.

Miguelo,
seguro,
não dou.

As palavras,
caladas,
formam esse
chorume
que não se pode
tocar.

Palavras
há tempos
caladas
só se pode
cantar.

Raphael Negrão

Bêbado III

Quando falam os loucos
todos fazem
ouvidos moucos.

Raphael Negrão

Old Man and Child

Bêbado IV

Para o Caio e o Voio

Sou o desconhecido:
o que ninguém conhece
e ninguém esquece
porque falta
o pressuposto.

Sou a noiva de maio,
o cachorro louco de agosto.

As estrelas
das noites de nuvens
compõem o meu rosto.

Sou aquilo que se esquece
no caminhão da mudança.

Sou esse pedaço sem graça
entre o velho
e a criança.

Raphael Negrão

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Agosto 1964

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Ribaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poema
uma bandeira

Ferreira Gullar

Descarrilado

Na volta para casa
as pessoas no metrô,
ruidosas,
são gargalhadas, histórias, músicas, memórias...

A mim,
apraz o silêncio.

Essa rotina –
sair de onde se está e não se quer;
chegar onde se quer e não se está ou não se é;
e vice-versa
– essa rotina
é de triturar ossos,
derreter músculos,
descolar retinas
do aqui-agora
(que é certo: vai embora)
para um porvir querido, suposto,
mas que,
pés no chão,
é também desgosto.

Segue pelo mesmo trilho
apenas em sentido oposto.

Raphael Negrão

Monstro n.º 1

Nasceu de minhas entranhas
um bicho feio, estranho demais.
Mas gosto dele, do seu cheiro,
dos barulhos que ele faz.

Vê-lo é sentir os pés, nus,
espalmados no chão;
É ter mais estrelas que calos
nas palmas das mãos;
É encher o meu peito
como colorido balão.

Depois cair



feito chumbo
na tenaz solidão.

Raphael Negrão

Elegia ao primeiro amigo

Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro.
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial.

Seguramente não é a minha forma.
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo
Como no tempo em que o sonho da mulher nos alucinava, e nós
Encontrávamos força para sorrir à luz fantástica da manhã.
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor
Nossos corpos duros e insensíveis
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto
Para aquele que, entre nós, ferido de beleza
Aquele de rosto de pedra
De mãos assassinas e corpo hermético de mártir
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa do mar.
Pouco importa que tenha passado, e agora
Eu te possa ver subindo e descendo os frios vales
Onde nunca mais irei, eu
Que muita vez neles me perdi para afrontar o medo da treva...
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa
A quem te deste como quem se dá ao abismo, e para quem cantas o teu desespero como um grande pássaro sem ar.
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto
Quem és, amigo, tu que inventaste a angústia
E abrigaste em ti todo o patético?
Não sei o que tenho de te falar assim: sei
Que te amo de uma poderosa ternura que nada pede nem dá
Imediata e silenciosa; sei que poderias morrer
E eu nada diria de grave; decerto
Foi a primavera temporã que desceu sobre o meu quarto de mendigo
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas e de velhos livros...
Pensar-te agora na velha estrada me dá tanta saudade de mim mesmo
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança tanto instante vivido:
Tudo isso que vais hoje revelar à tua amiga, e que nós descobrimos numa incomparável aventura
Que é como se me voltasse aos olhos a inocência com que um dia dormi nos braços de uma mulher que queria me matar.
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo)
Quero um bem enorme a vocês dois, acho vocês formidáveis
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o que não vejo possível
(Vá lá por conta da necessária gentileza...)
No entanto, delicadamente, me desprenderei da vossa companhia, deixar-me-ei ficar para trás, para trás...
Existo também; de algum lugar
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes
Escuto vozes ermas
Que me chamam para o silêncio.
Sofro
O horror dos espaços
O pânico do infinito
O tédio das beatitudes.
Sinto
Refazerem-se em mim mãos que decepei de meus braços
Que viveram sexos nauseabundos, seios em putrefação.
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar, na sombra
Uma mulher me vê viver... - perdi o meio da vida
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano ao luar.

Falarei baixo
Para não perturbar tua amiga adormecida
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível.
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez, assim parada
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto
Preciso desprender-me de toda lembrança; de algum lugar
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo
Segui-la, porque tal é o meu destino. Seguirei
Todas as mulheres em meu caminho, de tal forma
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida.

Vinícius de Moraes

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Invisível

"pessoas com suas malas
mochilas e valises
chegam e se vão
se encontram, se despedem
e se despem de seus pertences
como se pudessem chegar
a algum lugar
onde elas mesmas
não estivessem"

Alice Ruiz

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Esta é a tua safra

Minha filha, junto a teus irmãos não lamentem nem digam,
coitada da mamãe...
Ninguém é coitada, nem eu.
Somos todos lutadores.

Se souberes viver, aproveitar lições, escreverás poemas.
Teus cabelos brancos serão bandeiras de paz.
E viverás na lembrança das novas gerações.

Não te queixes jamais das mãos vazias que sacodem lama.
E pedaços rudes de um passado morto, não sejam revividos,
sem mais empenho senão enxovalhar, ferir e destruir.

Recria sempre com valor
o pouco ou o muito que te resta.
Prossegue. Em resposta ao néscio
brotará sempre uma flor escassa
das pedras e da lama que procuram te alcançar.
Esta é a tua luta.

Tua vida é apagada. Acende o fogo nas geleiras que te cercam.
O tardio poema dos teus cabelos brancos.
Recebe como oferta as pedras e a lama da maldade humana.
Esta é a tua safra.

Cora Coralina

Domingo

O relógio bate duas da tarde.
Jornais esparramados no chão,
o olhar passeia pela sala:
muitos objetos recolhidos por tantos caminhos.
Os filhos na rua, apreendem a vida.
Na saleta, a mulher lê uma revista.
Pela porta entreaberta
brilham as latas coloridas na prateleira da cozinha.
Na FM, Feuilles Mortes

A felicidade - será isso?

Sérgio Telles

I've Just Seen a Face

I've just seen a face,
I can't forget the time or place
Where we just met.
She's just the girl for me
And I want all the world to see
We've met.

Had it been another day
I might have looked the other way
And I'd have never been aware.
But as it is I'll dream of her
Tonight.

Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.

I have never known
The like of this, I've been alone
And I have missed things
And kept out of sight
But other girls were never quite
Like this.

Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.
Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.

I've just seen a face,
I can't forget the time or place
Where we just met.
She's just the girl for me
And I want all the world to see
We've met.

Falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.
Oh, falling, yes I am falling,
And she keeps calling
Me back again.

John Lennon e Paul McCartney

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Pedra com asas


ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque bão quer
não porque não tem asa

Paulo Leminski

Eye


Olho

Vi assim:
em um instante incerto,
ou melhor,
de uma certeza de quê não sei,
apareceu aquela porcelana
trincada de ponta à ponta,
olho oriental com cores de outras horas.
Talvez a lua,
mas a lembrança também se partiu.
Na Ásia me ouviram
e cantaram por mim
às deusas e deuses
de braços e vacas:
vi assim.

Daquela peça branca
pintada por mãos de flores antigas e leves
como o passado de toda a minha humanidade enfraquecida,
ouvia os passos de um relógio louco.
Pêndulo, meu coração,
teu olhar quebrado, inteiro.
Teu medo: disso me lembro.
Medo da criança, toda minha: palavra.
Da mulher, que eu não sabia,
fome do teu sangue ancestral.
Vi assim:
a corrida do plasma,
a carne cada vez mais vermelha.
As mãos umedecidas não vi,
mas era assim:
em cada vinco da pele uma gota crescia
e explodia após a partida.
Suor. Talvez não.
Memórias deixadas de lado em cada membro.

Vi assim:
do barro de que me fizeram
separou-se aquele olho oval
que sempre, me acusando,
absolvia os que morreram
no luto de minha felicidade.
Tracei caminhos na tua boca
mas teus beijos trituraram o vento.
Risco lento em tua carne amiga
e assustada.
Te torturaram mais do que podiam suportar os teus ossos fracos.
Morri contigo,
perdido nos fios daquela cabeleira: eclipse.
Vi assim.

Vi mais, confesso.
Menino, ainda, me lembro de seios de estátua.
Na verdade não era o busto, mas uma suspeita.
Pernas também tão longas
- o Chile de Neruda -
que não chego a me lembrar dos pés.
Vi, além disso tudo,
tanto cheiro:
de fruta - lembro a jabuticaba na varanda,
mulher, legume, criança, futuro...
Odor de coisa verde,
nada maduro, nada podre, nada mofado.
Vi assim: nada além.

Hora morta aquela.
Talvez não: hora da estrela...
Talvez a da manhã.
Talvez a outra que perdeu navios,
ou a que guiou os reis.
Talvez: suposição.

E suponho tanto corpo
em tanto pano que cobre
o ouro daqueles que esquecem.
Suponho um corpo de esquecimento.
Dádiva dos loucos,
fé dos que foram encarcerados
na liberdade de um mundo que enlouqueceu.
Um corpo sem cinzas,
sem verdades,
um corpo íntegro e sereno.
Me vigiam os anjos
que continuam sem entender
o mínimo que seja
a respeito dos homens.
Da minha lira solto a nota mais aguda
e caem serafins mortos na minha cama.
Quero um corpo vivo,
um corpo de gente:
- Chega de anjos!
Quero um corpo de mulher:
que compreenda,
que respire,
que se cubra e se dispa
de pelos e fragrâncias,
que traga o fogo do inferno
mas também
o medo do céu,
a faca na carne
e o sorriso de quem ficou em paz.

Mulher, qual teu nome?
Tento te chamar
mas as letras embaralhadas
c
a
e
m

n
u
m

poço
sem
fundo:

teus ouvidos.

Tanta coisa por dizer à mulher.
Tanta coisa que seca a língua
quando o momento se apresenta.
Tanta coisa de estragar os beijos de uma vida inteira
quando calam em peito indigno.
Caio: me traga os morangos mofados!
Vou levá-los todos à boca
e cuspi-los na cara dessa mulher,
para que ela entenda, meu amigo,
que meu desejo é honesto,
que meu fruto é escolhido,
que meu semblante carrega
toda a cor das terras que já pisei,
que meus olhos se cansam também,
que meu coração é diamante, amigo,
e manteiga quando vem o calor;
pra que ela entenda, Caio,
que a semente de mostarda é real,
e que sou árvore boa,
que tenho raízes estiradas em solo tão profundo
que nenhum vento me pode balançar;
para mostrar
que não deve cravar em minha casca,
com seu pequeno canivete,
um nome tão estranho e tão diferente do meu;
para que ela sinta o sabor da vida
e não dos versos que são sempre muito doces
e me viciam
e me perdem:
novamente.

No entanto, ela me olha.
Ou o chão, não me lembro.
Mas vi assim:
dois pires secos atirados ao ar.
Mil estouros
os cacos no meu corpo
o cansaço
a cura:

o começo

o casulo

o câncer.

Um inseto: mosca? Não, essas não ousam sua casa.
Talvez uma joaninha.
Deus fizesse ser uma barata
correndo por seu corpo inteiro,
ou um rato.
Talvez um vaga-lume.
Talvez uma ave:
um pombo-correio ou algo assim
que entrasse trazendo um botão de rosa.
Rosa criança como essa mulher.
Essa lagoa imensa,
essa água toda me chama
e eu me afogo
e me encontro.
Um boi me olhava, quieto, ruminando passados,
temendo futuros: contramão.
Uma boiada inteira
atravessando um caudaloso rio de incertezas,
muito calmamente,
muito calmamente.
Lembro dos bois mortos.

Outras vezes, vi assim:
astros orbitando em torno de um sol apagado.
Era o fim dos tempos.
Vi a besta com dez cabeças
sete chifres
tudo o mais.
Os selos começaram a se abrir.
Um por um.
As trombetas.
A grande explosão:
foi assim.
Antes do julgamento um novo começo.
Vi assim:
um sol novo, mais carbono que hélio,
mais luz e mais mistérios
nos raios que davam vida a tudo.
O calor, recordo, insuportável.
Todos os fantasmas
que nos louvavam,
eu e a criação,
derretendo naquele chão que era nenhum.
Pés, já disse, não lembro: pernas apenas,
que sustentavam todo o edifício.
Atlas, lembro, e rio muito:
o mundo nas costas.
Vi assim: há alguma coisa que esqueci.

Lembro que das extremidades escarpadas do apartamento
via todos os abismos e todas as estradas,
nada cabendo na certeza
das equações de minhas emoções despedaçadas.
Vi assim:
o dente sujo, pálpebra, asco, fúria,
sangue escorrendo até o pescoço: mordida.
Dor intensa, os cubos de gelo
no copo aéreo cheio de uísque.
Quando foi o corpo?
Não vi, mas era assim:
avenidas zunindo um atropelamento constante
carros cada vez mais rápidos
e o vagar do homem cada vez maior.
Lembro de pequenas faixas no céu,
mas isso já não era o corpo.
O machado na cabeça: aí sim, o corpo.
Duas cabeças agora, o machado sibilando no ar.
Dois olhos agora.

Vi assim:
dos movimentos etéreos
das curvas dos braços
dos toques em locais de peles cobertas
do sorriso crepuscular
um beijo hesitava
entre os dois olhos borrados.
Lembro dos lábios cerrados
das pernas
dos seios também. Menino...
Era assim:
um corpo estúpido
vendo um céu sem estrelas
mas com duas luas.
Diziam os loucos
que a lua vinha da Ásia:
lá me ouviram.

Era tanto movimento, que vi assim:
um verde morto
algo no cabelo
uma expectativa de um parto solitário.
Vi lágrimas depois. Foi assim:
a porta cerrada,
os risos,
os toques do telefone,
a amiga do outro lado
- ou o amigo, quem sabe -
mas depois um aperto tão forte
que tudo se fez água.
Pena do menino, da menina, de todos.
Temia pelo nosso futuro.
Um olho bobo agora, um olho estúpido.
Vi assim:
uma pedra escura e rara
roubada das minas de Salomão
que se partia em pedaços de papel.
Queimavam tudo em volta.
Traziam risadas e arrependimento.
A chuva cada vez mais forte,
e não choveu.
Os olhos estúpidos
apontando um norte irreal.
Era assim:
tanto braço,
tanta perna,
tanto corpo,
tanto rosto apagado.
Lembro de fotografias:
a paz nos rostos dos cadáveres da minha infância.
Como eu amava aquelas pessoas.
Como ardiam minhas vísceras
a cada pensamento daqueles:
cada imagem, uma chama.
Vi assim.

Vi também, no fim,
uma solidão tão grande,
um deserto tão perto de tudo,
lembro dos campos secando,
lembro dos vales vazios,
lembro de uma criança sozinha chorando com medo da vida...
Um corpo caído na cama,
sem anjos,
sem velas ao redor,
um corpo vivo e saudoso,
um corpo medroso,
um corpo de uma criança morta,
um corpo de mulher.
Lembro dos abraços,
de meus dentes naquela carne,
das gargalhadas no bairro inteiro.
Lembro também do caminhar com passos certos
por entre as casas antigas
as ruas de traçado planejado
e daquela flor que trazia as cores mais impossíveis do asfalto.
Não vi, mas era assim.

Raphael Negrão

Yellow Rose


Entrega

Chegaste com a chuva
Trazendo em tuas mãos a rosa amarela e delicada.
Cheiravas a terra úmida.
Terra úmida é o que eras.

Da moldura da janela,
Enquanto os braços do mar pousavam em teus ombros,
Espiavas o escuro da casa.

Do lado de fora,
Sem sentir o cheiro de mofo dos armários,
Sem ver os ladrilhos escuros do corredor infinito,
Sem pressentir o abismo por sobre o qual a varanda se estendia,
Me aguardavas com o cabo da flor
Arranhando a palma das mãos crispadas.

Abri-te a porta
E com o aroma da rosa tu entraste,
Tu também amarela e delicada,
Deixando para trás a terra úmida
Em troca da terra estranha e desabitada.

Raphael Negrão

terça-feira, 29 de abril de 2008

Golden Showers


Soneto 237 Insubordinado

Açúcar, óleo e sal não vá comendo!
Reduza! Vote! Pague! Não se atrase!
Não fale palavrão! Não erre a crase!
Assine! Ligue já! Venha correndo!

Aos médicos meu gosto nunca prendo.
Não chego a ser do contra, mas sou quase.
Coloco algo vulgar em cada frase.
Ao preço do comércio não me vendo.

A desobediência é uma ciência,
mistura de coragem e de medo:
exige livre arbítrio e paciência.

Às vezes é melhor fingir que cedo.
Mas trepo mesmo em fase de impotência,
e, quando a foda é longa, gozo cedo.

Glauco Mattoso

Estupor

esse súbito não ter
esse estúpido querer
que me leva a duvidar
quando eu devia crer

esse sentir-se cair
quando não existe lugar
aonde se possa ir

esse pegar ou largar
essa poesia vulgar
que não me deixa mentir

Paulo Leminski