segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Broken Hammer

Bêbado

Das pedras que tenho nas mãos
não consigo fazer pó nem castelo.
De que me serve
a evolução humana até aqui,
a civilização?

A "civilização",
e o riso irrompe,
inevitável.

As mãos repletas de calos
que não contam histórias
são uma vergonha inefável.

O desenho animado
me revela uma verdade
até aqui desconhecida,
ou, se conhecida,
indecifrável:

pedras não são pó nem castelos.
Pedras são pedras
e não temem martelos.

Raphael Negrão

Bêbado II

Se canto
e me alegro
é só porque
quotidianamente
as palavras
sonego.

Miguelo,
seguro,
não dou.

As palavras,
caladas,
formam esse
chorume
que não se pode
tocar.

Palavras
há tempos
caladas
só se pode
cantar.

Raphael Negrão

Bêbado III

Quando falam os loucos
todos fazem
ouvidos moucos.

Raphael Negrão

Old Man and Child

Bêbado IV

Para o Caio e o Voio

Sou o desconhecido:
o que ninguém conhece
e ninguém esquece
porque falta
o pressuposto.

Sou a noiva de maio,
o cachorro louco de agosto.

As estrelas
das noites de nuvens
compõem o meu rosto.

Sou aquilo que se esquece
no caminhão da mudança.

Sou esse pedaço sem graça
entre o velho
e a criança.

Raphael Negrão

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Agosto 1964

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Ribaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poema
uma bandeira

Ferreira Gullar

Descarrilado

Na volta para casa
as pessoas no metrô,
ruidosas,
são gargalhadas, histórias, músicas, memórias...

A mim,
apraz o silêncio.

Essa rotina –
sair de onde se está e não se quer;
chegar onde se quer e não se está ou não se é;
e vice-versa
– essa rotina
é de triturar ossos,
derreter músculos,
descolar retinas
do aqui-agora
(que é certo: vai embora)
para um porvir querido, suposto,
mas que,
pés no chão,
é também desgosto.

Segue pelo mesmo trilho
apenas em sentido oposto.

Raphael Negrão

Monstro n.º 1

Nasceu de minhas entranhas
um bicho feio, estranho demais.
Mas gosto dele, do seu cheiro,
dos barulhos que ele faz.

Vê-lo é sentir os pés, nus,
espalmados no chão;
É ter mais estrelas que calos
nas palmas das mãos;
É encher o meu peito
como colorido balão.

Depois cair



feito chumbo
na tenaz solidão.

Raphael Negrão

Elegia ao primeiro amigo

Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro.
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial.

Seguramente não é a minha forma.
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo
Como no tempo em que o sonho da mulher nos alucinava, e nós
Encontrávamos força para sorrir à luz fantástica da manhã.
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor
Nossos corpos duros e insensíveis
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto
Para aquele que, entre nós, ferido de beleza
Aquele de rosto de pedra
De mãos assassinas e corpo hermético de mártir
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa do mar.
Pouco importa que tenha passado, e agora
Eu te possa ver subindo e descendo os frios vales
Onde nunca mais irei, eu
Que muita vez neles me perdi para afrontar o medo da treva...
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa
A quem te deste como quem se dá ao abismo, e para quem cantas o teu desespero como um grande pássaro sem ar.
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto
Quem és, amigo, tu que inventaste a angústia
E abrigaste em ti todo o patético?
Não sei o que tenho de te falar assim: sei
Que te amo de uma poderosa ternura que nada pede nem dá
Imediata e silenciosa; sei que poderias morrer
E eu nada diria de grave; decerto
Foi a primavera temporã que desceu sobre o meu quarto de mendigo
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas e de velhos livros...
Pensar-te agora na velha estrada me dá tanta saudade de mim mesmo
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança tanto instante vivido:
Tudo isso que vais hoje revelar à tua amiga, e que nós descobrimos numa incomparável aventura
Que é como se me voltasse aos olhos a inocência com que um dia dormi nos braços de uma mulher que queria me matar.
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo)
Quero um bem enorme a vocês dois, acho vocês formidáveis
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o que não vejo possível
(Vá lá por conta da necessária gentileza...)
No entanto, delicadamente, me desprenderei da vossa companhia, deixar-me-ei ficar para trás, para trás...
Existo também; de algum lugar
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes
Escuto vozes ermas
Que me chamam para o silêncio.
Sofro
O horror dos espaços
O pânico do infinito
O tédio das beatitudes.
Sinto
Refazerem-se em mim mãos que decepei de meus braços
Que viveram sexos nauseabundos, seios em putrefação.
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar, na sombra
Uma mulher me vê viver... - perdi o meio da vida
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano ao luar.

Falarei baixo
Para não perturbar tua amiga adormecida
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento.
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água.
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível.
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez, assim parada
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto
Preciso desprender-me de toda lembrança; de algum lugar
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo
Segui-la, porque tal é o meu destino. Seguirei
Todas as mulheres em meu caminho, de tal forma
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida.

Vinícius de Moraes